Lamentável

Casos de racismo na UFPel emitem alerta na gestão

Denúncias de insensibilidade na banca de heteroidentificação e de mais um aluno negro barrado em portaria geraram repercussão nas redes sociais

Divulgação -

Na última semana, dois casos de racismo geraram repercussão na comunidade acadêmica da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e nas redes sociais. Uma das acusações se dá a partir da situação de um estudante angolano da pós-graduação, que enfrentou dificuldades para participar da banca de heteroidentificação para cotas raciais. Em outro, mais um aluno foi barrado pelos seguranças de um prédio da instituição, desta vez na faculdade de Odontologia. A gestão admite a necessidade de intervenções urgentes para evitar que casos como esses sigam acontecendo. A pedido da defesa das vítimas, o Diário Popular não irá citar o nome de nenhum dos envolvidos.

O caso do estudante nascido no continente africano foi motivo de uma nota de repúdio emitida pelo Coletivo Negro das Ciências Sociais, que o definiu como um “ato de racismo institucional” da universidade. A mensagem explica que o acadêmico foi contemplado com uma bolsa de mestrado destinada a pessoas negras dentro do programa de ações afirmativas de pós-graduação. Por residir no Ceará, atualmente, precisava do dinheiro do incentivo para organizar sua mudança para Pelotas. No entanto, a universidade só começaria a pagar a bolsa após a banca de heteroidentificação. Ou seja, um impasse foi criado: para receber a bolsa, ele precisava estar em Pelotas; para estar em Pelotas, ele precisava do dinheiro da bolsa.

O texto continua explicando a solicitação do aluno para que a comprovação fosse realizada em outra universidade, de maneira virtual, ou apenas em agosto. No entanto, a UFPel não aceitou nenhuma das propostas. “Mesmo sendo um estudante de fenótipo incontestavelmente negro, a universidade não atendeu a nenhum de seus apelos, pelo contrário, representantes da universidade aconselharam que ele ‘tomasse um crédito’ para comprar a passagem e vir a Pelotas somente para fazer a banca, recomendação esta que evidencia a falta de sensibilidade com a situação do estudante, com os propósitos reparatórios das políticas de ações afirmativas e, ao mesmo tempo, reforça a cultura de racismo institucional enraizada na UFPel”, encerra.

A reportagem fez contato com o advogado Fábio Gonçalves, representante do jovem, que contextualizou a situação. “É um aluno de extrema fragilidade financeira”, aponta. O acadêmico acabou fazendo o deslocamento, endividando-se para realizar a viagem. A banca ocorreu durante esta semana. Antes, sua defesa entrou com mandado de segurança para garantir que, mesmo sem sua presença, não estaria excluído da seleção. “Ele é um negro, retinto, cuja figura não deixa dúvidas”, argumenta Gonçalves. Segundo o advogado, a materialização do acesso do negro à universidade vem sendo cada vez mais dificultada ou fragilizada, se desenquadrando de avanços obtidos neste sentido recentemente. A defesa diz aguardar a manifestação da UFPel nos autos do processo.

A reportagem conversou com a coordenadora de Diversidade e Inclusão da UFPel, Airi Sacco. Segundo ela, em concordância com nota emitida pela instituição, não são feitas bancas virtuais na universidade por questões como iluminação, possibilidade de manipulação e dificuldades de conexão, entre outros fatores. Um dos exemplos citados remete aos alunos cotistas, com ingresso desde o início da crise sanitária, que fizeram sua matrícula de forma condicional, ou seja, apenas apresentaram a autodeclaração e posteriormente passarão pela banca, em força-tarefa a ser iniciada no retorno às atividades presenciais. Segundo ela, ao longo da pandemia, apenas bancas muito urgentes ou determinadas judicialmente foram feitas de maneira presencial.

A coordenadora diz ainda que o caso do aluno angolano distingue-se pelo motivo de a UFPel estar com dois calendários vigentes: o da graduação, ainda em 2021/2, e o da pós-graduação, já em 2022/1. Ela cita que a liberação do Ministério da Educação (MEC) para o ensino remoto era até o final do calendário de 2021. Airi também explicou que o aluno fez contato com diversos setores da UFPel, tendo inclusive conversado diretamente com a reitora da instituição, mas que, realmente, o pagamento da bolsa estaria atrelado, por questões legais, à banca. “Eu entendo a situação. A gente tem vários estudantes com muitas dificuldades socioeconômicas. A universidade tem as regras e nesse caso a regra para o recebimento da bolsa era o estudante estar em Pelotas. Os procedimentos de heteroidentificação são feitos para barrar aqueles que não são sujeitos de direito, não para dificultar a vida das pessoas negras.”

Ela admite que a gestão poderá repensar essas regras posteriormente. “Entendo os argumentos que dizem que o tratamento igualitário não promove a equidade e acho que a gente tem que utilizar desse episódio para rever, de repente, os procedimentos (...) se temos vários grupos dizendo que a nossa atitude está permeada de racismo institucional, acho que a gente tem que parar e olhar para isso”, analisa.

Na Odonto, mais um caso de aluno barrado
Outro caso com grande repercussão nas redes sociais veio a público após a publicação de uma professora de Odontologia. Segundo ela, o estudante em questão, que já havia sofrido outras agressões traumáticas motivadas por discriminação racial, faz uso da clínica odontológica da UFPel para atendimentos também enquanto paciente. No entanto, ao chegar naquele dia, foi barrado na portaria. A docente, ao ouvir a confusão, interviu e explicou à responsável pela entrada que se tratava de um acadêmico, mas o pedido de identificação foi mantido. A professora, também negra, retirou o rapaz do local pela mão o chamando pelo nome, em uma tentativa de provar que o conhecia.

A reportagem fez contato com a docente, que pediu privacidade neste momento. Assim como o aluno angolano, o advogado Fábio Gonçalves também é representante do jovem da Odontologia. Ele aponta a segregação por parte da unidade. “Na prática, o acesso é sempre normal para alunos e cidadãos”, relata, citando que o episódio foi extremamente traumático para o jovem e que, por isso, não entraria em detalhes.

UFPel admite padrão inaceitável
O caso remete a uma situação parecida ocorrida em março deste ano, quando relatos de alunos negros sendo barrados na portaria do Hospital Escola da universidade (HE-UFPel) ganharam repercussão e também foi motivo para notas de repúdio. A UFPel diz que, apesar do serviço de portaria ser terceirizado, a instituição não está imune às críticas. Segundo a coordenadora de Diversidade e Inclusão, são cotidianos os relatos de racismo dentro do ambiente universitário, embora a maioria não venha a público. “A gente tem uma sociedade muito racista e uma universidade que reflete essa sociedade, está inserida nela e que apresenta os mesmos problemas”, pontua.

Airi admite ser urgente a criação de formas de intervenção junto à comunidade acadêmica para que o preconceito seja combatido. Ela pede apoio de todas as partes ligadas à universidade, da gestão aos estudantes, para que a temática seja melhor pensada, pois, apesar de ações pontuais feitas frequentemente dentro dos ambientes da UFPel, ela diz ser hora de algo mais amplo. “Estamos abertos para conversar com todos os grupos e pessoas que tenham sugestões”, convida.

Segundo a gestora, o próximo passo será fazer intervenções estratégicas dentro de cada unidade específica da instituição para tentar combater ao máximo a repetição deste padrão deplorável. “A gente precisa mudar a cultura racista da universidade”, finaliza.

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